Em
1986 fui diagnosticada com diabetes mellitus aos 9 anos de idade,
iniciando o tratamento com aplicações de insulina NPH, descoberta entre a
década de 30 e 40. Não era humana, porque não se processava insulina
humana ainda. Eu utilizava a insulina bovina, tendo em vista que a
suína, indicada como melhor pelos médicos, também era mais cara, e
nenhuma delas era distribuída pelo Governo. O Sistema Único de Saúde -
SUS, criado pela Lei nº 8.080/1990, ainda não existia.
A
NPH restringia bastante as minhas atividades, pois, em razão dos picos
de atuação (momentos em que o efeito da insulina se torna mais forte),
precisava me alimentar impreterivelmente a cada 3 horas. Se ficasse mais
de 3 horas sem ingerir algum alimento, sofria hipoglicemias, cujos
sintomas são tremores, tontura, perda temporária da capacidade
cognitiva, podendo chegar a espasmos - a "grosso" modo, uma crise
convulsiva.
Embora
seguisse à risca a dieta alimentar, que excluía qualquer tipo de
alimento que contivesse açúcar em sua composição (na época não existia
refrigerantes sem açúcar, e chocolate para diabéticos era "Pan" ou o
caríssimo "Gerbeaud"), um ano depois do diagnóstico, fui acometida por
catarata nos dois olhos, típica complicação do diabetes.
Aos
10 anos de idade tinha aproximadamente apenas 40% da minha visão, e não
podia ser operada ainda porque meu corpo estava em fase de
desenvolvimento. Como não enxergava o que a professora escrevia na
lousa, mesmo da primeira carteira, me sentava junto de uma colega, que
me ajudava a copiar a matéria (meu caderno era uma brochura toda branca,
porque não enxergava as linhas de um caderno normal, e utilizava
canetas hidrocor para fazer anotações, porque também não enxergava as
tintas de canetas esferográficas, nem dos lápis). Para fazer provas,
minha mãe gravava numa fita K-7 os textos dos livros didáticos para eu
ouvir, e as professoras me submetiam a teste oral.
Entre
1987 e 1992 recuperei um pouco da visão, e continuei meus estudos
normalmente, com injeções de NPH, cadernos, lousas e esferográficas. Mas
em 1993, quando então contava com 16 anos, a catarata avançou mais, e
minha visão ficou restrita a 30% nos dois olhos. Não enxergava meu rosto
em frente ao espelho. Tive que parar de estudar para cuidar da minha
saúde e conseguir realizar a cirurgia do olho esquerdo. Fiquei 6 meses
esperando a minha glicemia se regularizar, pois esta era uma condição
para que eu pudesse ser operada.
Lembro
que, poucos dias após a cirurgia, os resultados já começaram a
aparecer. Ficava maravilhada com o verde das árvores, e com o brilho das
cores da natureza, porque a catarata opacifica a visão. É como se
houvesse uma cortina branca na frente dos olhos. Desde 1987 não via nada
com brilho. Antes, o mundo era opaco pra mim, e agora brilhava!
Segui
com meus estudos e entrei na Faculdade de Direito em 1997, sabendo que a
vida seria sempre uma batalha, sendo eu diabética ou não. Mas o fato é
que o meu histórico prévio da doença, aliado aos "conselhos" médicos da
época, não me fizeram uma pessoa muito otimista. Costumo dizer que
criança que não é diabética sabe que, quando apronta, vai sofrer algum
castigo e não poder brincar, mas criança diabética que não segue as
regras sabe desde pequena que seu "castigo" é a morte. Vi o tio de uma
amiga, diabético, falecer aos 30 anos de idade, cego, com insuficiência
renal, problemas nas extremidades e no coração. Fiquei muito
impressionada com isso, e achei que não passaria dos 30.
Mas
passei! Pouco antes de fazer 30 anos, em 2004, comecei a utilizar a
insulina glargina (lantus), patenteada pela francesa Sanofi-Aventis no
início da década de 2000. Sem picos de atuação, a insulina permite uma
flexibilidade maior no quotidiano do diabético e, aliado às insulinas
ultrarrápidas, que começam a agir 15 minutos após a aplicação, é
possível comer de tudo. Meu grande prazer era ficar 6 horas sem comer
nada, pelos simples fato de não ser mais "obrigada" a comer a cada 3
horas. As crises hipoglicêmicas diminuíram significativamente.
Em
2007, mesmo depois de casada, minha mãe ainda me ajudava a pagar os
insumos de diabetes, num total de R$ 800,00 por mês. Sentia-me um peso
por causa disso, e comecei a procurar o fornecimento de insumos pelo
SUS. Antes de receber uma resposta negativa para recebimento da lantus e
da ultrarrápida, tive que passar em vários postos da prefeitura e da
Secretaria da Saúde do Estado, pois não havia informações corretas
quanto ao local para requerimento dos remédios, e quando eu achava o
local, não estava mais lá, já havia mudado para outro endereço.
Assim,
em 2008 comecei minha batalha judicial pelo fornecimento de insumos de
diabetes, sendo eu mesma a minha primeira cliente. Quando consegui a
liminar para receber todos os meus insumos, liguei para minha mãe, e
disse que ela não teria mais gastos comigo. Senti um peso enorme ser
retirado das minhas costas. E vieram outros clientes diabéticos, e
outros processos. Em todos eles, a Secretaria da Saúde alegava que
fornecia a NPH, que seria similar à glargina pleiteada, e eu explicava
para os Juízes que na prática e na composição farmacológica as insulinas
eram bem diferentes. Assim, em função da não similaridade, o Estado era
obrigado a fornecer a insulina melhor.
Os
Juízes, por sua vez, só concediam o fornecimento dos insumos pelo SUS
se considerassem que o paciente era praticamente miserável, restringindo
judicialmente o acesso ao Sietema Único de Saúde, que por sua própria
determinação legal é UNIVERSAL (ou seja, deve atender a todos, ricos ou
pobres).
Em
2009, tendo em vista o grande número de processos para fornecimento de
tratamentos de saúde, o Supremo Tribunal Federal realizou uma audiência
pública para discutir a judicialização da saúde no Brasil, através da
fala de especialistas no assunto das áreas jurídica, médica e
administrativa. Fiquei sabendo desta audiência uma semana antes de sua
realização e, verificando os documentos enviados pela sociedade civil,
percebi que não havia qualquer menção ao diabetes, o que me surpreendeu,
pois sempre recebi inúmeros folhetos de propaganda de associações de
diabetes, e nenhuma delas se mobilizou para defender os diabéticos
usuários do SUS.
Em
Brasília, descobri que os procedimentos do SUS no que tange ao
fornecimento de insumos de diabetes são muito diversificados pelo Brasil
afora. Quem acredita naquela história de que na região Nordeste é tudo
pior, está muito enganado. Em conversa com a Secretária da Saúde do
Estado do Ceará, descobri que lá o fornecimento da insulina glargina
"lantus" estava há muito padronizado. Ela não acreditou quando disse que
no Estado de São Paulo, principalmente na Capital, era uma tarefa
impossível receber essa insulina pelo SUS.
O
menosprezo pelo assunto por parte do Governo ficou claro com a (falta
de) participação do Ministério da Saúde no primeiro dia da audiência
pública: o então Ministro, José Gomes Temporão, nem se dignou a
comparecer ao evento, enviando seu assessor para falar que renovaria o
protocolo do SUS, o que não foi feito até hoje.
A
despeito do meu pessimismo preeestabelecido, depois de conversar com
vários Juízes e perceber que a falta de conhecimento sobre a gravidade
do problema é que impedia o acesso dos pacientes aos remédios, seja via
judicial seja via administrativa, e perceber que uma orientação adequada
conseguia surtir efeitos extremamente positivos, principalmente acerca
dos efeitos práticos das insulinas NPH e glargina, sentia que poderíamos
ter um avanço, através da luta pela incorporação da lantus ao protocolo
do SUS, que, apesar de ser o padrão mínimo de fornecimento, é utilizado por algumas administrações como teto.
Em
meados de 2012 conheci Maristela Prilips, diretora da Associação
Jacareinse de Diabetes, que por empenho próprio e sem apoio
governamental ou institucional, conseguiu que o munícipio de Jacareí
fornecesse a insulina glargina administrativamente. Mas logo no início
deste ano de 2013, após reeleição por campanha centrada na saúde, o
prefeito daquele município do interior de São Paulo substituiu o
fornecimento de lantus pela NPH, que já está prejudicando os pacientes
que retornaram à prisão alimentar dos picos de atuação dessa insulina, alegando excesso de gastos com o insumo.
O
argumento, todavia, não se justifica na prática, pois o diabetes
implica em gastos inevitáveis. Os efeitos do mau controle são
devastadores, minando o funcionamento do corpo do doente em praticamente
todos os órgãos, ou seja, o SUS terá gastos tanto para cuidar
previamente do diabético, através do fornecimento de uma insulina
melhor, ou, não fornecendo a glargina, através dos cuidados paliativos
antes da morte por complicações da doença. Assim, melhor "investir" nos
cuidados preventivos, garantindo qualidade de vida ao diabético (que
vivendo melhor, trabalha melhor, consume melhor, ou seja, também
contribui para o aquecimento da economia), do que gastar com
hemodiálises, cirurgias de catarata, coração, etc (e condenar o
diabético a ser um expectador da destruição lenta de seu corpo) tese
também defendida em meu texto enviado para o STF.
Mesmo porque, os investimentos nessa área ainda são pequenos, posto que a maioria das administrações investe apenas o mínimo obrigatório estipulado pela Constituição Federal.
Além disso, alguns gastos nem são especificamente com tratamentos de
saúde, tanto que no início de 2012 a presidenta Dilma editou uma lei
para especificar o que se caracterizaria como tal (ou seja, para
explicar para o administrador público que gastos com reformas de prédios
de secretarias de saúde não são investimentos em saúde).
No
início desta semana uma amiga que conhece minha luta pelos direitos dos
diabéticos perguntou se a nova insulina que seria produzida pelo Brasil
e Ucrânia era boa. Não tinha visto a notícia ainda e, quando pesquisei
no sítio da Fundação Oswaldo Cruz, instituição subsidiada pelo
Ministério da Saúde, li uma entrevista a respeito do assunto, falando sobre a produção binacional de insulina recombinante.
Fiquei
emocionada, porque as informações foram sendo passadas em conta-gotas.
Quando eles usaram a palavra recombinante no início do texto, achei que
era a quebra de patente da insulina produzida pela Aventis, a glargina
(lantus), produzida a partir de DNA recombinante. Mas no meio da
entrevista falavam em cristais e nas duas empresas que produzem as
ultrarrápidas, também modernas. Então pensei que eram elas e, mesmo não
sendo a mais cara (a lantus), também seria uma coisa boa.
Mas,
depois que o Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz passaram
mais informações sobre a produção de insulina pelo Brasil e Ucrânia,
percebi que, infelizmente, não houve quebra de patente, a insulina que
eles vão produzir é uma medicação obsoleta, a velha (de 1936) NPH. Estou
frustrada! Acreditava que um sonho tinha se realizado, mas na verdade é
uma farsa com a pior das intenções: mascarar uma insulina de tecnologia
ultrapassada para dizer que é similar à mais moderna, sem picos de
atuação, apenas pelo fato de utilizar tecnologia recombinante. Todas as
insulinas atuais são processadas a partir de DNA recombinante, mas
apenas a glargina tem duração estável, em razão da modificação de uma
cadeia de aminoácidos. Portanto, não são similares, nem na composição,
muitos menos no funcionamento.
Em
uma comparação bastante grosseira, seria como o Governo Federal dizer
que resolveria o problema do transporte no Brasil através do
investimento numa fábrica nacional de carroças. É isso que eles estão
fazendo: investindo milhões na produção de um medicamento obsoleto.
Colocar
uma criança hoje em tratamento de diabetes com a insulina NPH é
sujeitá-la aos mesmos problemas, e ainda outros, similares aos que eu
tive 20 anos atrás, opacificando a sua infância e adolescência. A
diferença é que, na época, não existia tecnologia mais moderna para
melhorar o controle da doença, e hoje existe.
No
meu caso, tendo em vista as variações glicêmicas a que fiquei sujeita
por longos anos utilizando a NPH, me tornei assintomática, ou seja, meu
corpo não tem mais sinais de hipoglicemia ou hiperglicemia. Apesar de
melhorar bastante com a utilização da lantus, o estrago causado pela NPH
já se instalara. Durante 2011, ao menos uma vez por semana sofria
crises graves de espamos (tipo de convulsão), e tive que colocar uma
bomba de infusão de insulina com monitoramento de glicemia em tempo
integral, também obtida através de processo judicial para fornecimento
pelo SUS.
Assim,
não há motivos para se comemorar. A produção da insulina
brasileiro-ucraniana representa perda de investimento, e retrocesso no
tratamento dos diabéticos. Nada menos que a inclusão da
glargina no protocolo do SUS para diabetes é suficiente. Essa será minha
bandeira!
A pergunta que fiz no meu texto enviado ao STF vai continuar a ecoar, até que a resposta seja diferente da atual. Qual resposta o Executivo brasileiro quer dar a uma criança de 9 anos quando questionar se sobreviverá sendo portadora de diabetes: que morrerá em 10 ou 20 anos, com múltiplas falências dos órgãos, ou que viverá muito tempo em função de um novo modelo de atendimento, que, assim como no caso da AIDS, será também exemplo ao mundo?
Quadro comparativo da
atuação da lantus (azul escuro) - estável e sem pico de atuação, e da
NPH (azul claro) - instável e com pico de atuação