Diabética há 27 anos, convivi com a doença de forma parcialmente harmoniosa durante este tempo. Apesar de algumas dificuldades (diagnóstico de diabetes em 1986 aos 9 anos de idade, de catarata nos dois olhos em 1987 aos 10 anos de idade, de perda de 70% da visão em 1993 aos 16 anos de idade, e recuperação após cirurgia que me obrigou a parar de estudar no mesmo ano), vivi conforme as possibilidades que me foram dadas, sempre buscando ampliá-las.
Na infância, meu espírito de pequena loba solitária me afastava de associações de diabéticos e de qualquer outro portador de diabetes. Detestava "papo de farmacinha". E também não sentia qualquer simpatia por instituições, empresas e associações de saúde em geral. Portanto, não freqüentei nenhuma delas.
Em meados dos anos 90, conheci um grande amigo que também é diabético, e comecei a desenvolver um certo gosto pelo "papo de farmacinha": quando nos encontrávamos falávamos de hemoglobina, de episódios engraçados e traumáticos de hipoglicemias, e demais assuntos comuns a diabéticos e familiares. A partir deste amigo, percebi que não estava mais sozinha, e como era importante compartilhar experiências de cuidado (ou erros) no trato da doença e de nós mesmos, os doentes.
Até então, no meu espelho, exergava apenas uma doença, e temia que, em contato com outros portadores, fosse enxergar uma epidemia, um hospital repleto de doentes. Mas convivendo com o Davi, enxerguei um amigo, e consegui ver a nós dois como pessoas. O diabetes era um detalhe que nos aproximou, mas o cerne da nossa amizade sempre foi a pessoa que cada um é. Ele, sem saber, venceu minha resistência ao contato com outros diabéticos.
Desde o início da minha carreira profissional em Direito tratei de casos de saúde diversos. Meu primeiro estágio foi na antiga penitenicária do Carandiru, no Hospital Central, fazendo pedidos de indulto humanitário para presos com AIDS e tuberculose (tema da minha tese de conclusão da faculdade). A primeira ação que redigi, no primeiro escritório de advocacia em que trabalhei, foi para garantir o custeio de colocação de stent pelo plano de saúde de um cliente com cardiopatia.
Em 2008 entrei com a minha (em meu próprio favor) primeira ação de diabetes. Ao receber a notícia da liminar para fornecimento das insulinas, canetas e agulhas pelo Estado, liguei para minha mãe e informei que ela não precisaria mais pagar o meu tratamento. Isso era uma tonelada que pesava sobre mim: embora formada e trabalhando, não conseguia custear minha saúde sozinha. Este foi o germe para a criação do meu escritório, com foco na saúde pública e privada.
Em 2009, ao saber que seria realizada a Audiência Pública sobre Saúde no STF, senti-me motivada a atuar fora do espectro particular do diabetes,
para além do meu próprio caso e dos meus clientes, e enviei o texto "Sobre o tratamento do Diabetes"
para defender o fornecimento de insumos para diabéticos pela via
judicial quando a via administrativa se mostrava falha.
De 2008 pra cá, tive muitos clientes diabéticos e percebi que, embora identificados pela doença, cada um se diferencia pela pessoa que é. Cada um tem suas próprias dificuldades, e merece a atenção requerida por cada tipo de problema. Mas também tive e tenho clientes com outras doenças. Acompanhei dois deles em casos de câncer: de mama e de próstata.
A cliente portadora de câncer de mama precisava de um exame (PET-CT) para verificar se o mal-estar que sentia era causado pela medicação que tomava ou se era um caso de metástase. Consegui a liminar no Tribunal de Justiça de São Paulo e acompanhei-a por algumas horas no dia do exame. A preparação é bastante sofrida (às 15h00 ela estava em jejum, esperando a chegada do material radiotivo, que seria introduzido em seu corpo. Ela, além de fome, sentia muitas dores no corpo e cansaço). Felizmente, após a realização do PET-CT, descobriu-se que era um problema com a medicação.
Já o cliente portador de câncer de próstata precisava que o plano de saúde pagasse os custos da prostatectomia robótica. Esta ação não se limitou ao pedido de pagamento do procedimento (obtido liminarmente), mas incluiu o requerimento de indenização por danos morais, pois o paciente só ficou sabendo da recusa do plano de saúde no momento da internação, o que lhe causou extrema aflição, a ponto de aparecer uma herpes-zoster em seu braço. Realizada a cirurgia, o tumor foi resolvido, mas como efeito colateral da cirurgia, surgiu uma disfunção erétil, e por esta razão meu cliente vem fazendo acompanhamento psicológico.
Portanto, a partir de minha experiência pessoal e profissional, aprendi que cada doença e cada doente merece respeito e atenção, e que a melhor forma de evitar as complicações de qualquer tipo de problema de saúde é a informação, sendo as campanhas públicas de conscientização e orientação sobre as doenças grandes aliadas da prevenção e do bem-estar das pessoas.
O logotipo do Dia Mundial do Diabetes é um círculo azul. Esse símbolo
foi criado como parte da campanha de conscientização "Unidos pelo
Diabetes” e adotado em 2007 para comemorar a aprovação da Resolução das
Nações Unidas sobre o Dia Mundial do Diabetes. Em muitas culturas, o círculo simboliza a vida e
a saúde. A cor azul representa o céu, que une todas as nações e
simboliza a comunidade internacional do Diabetes.
Por ser o dia mundial do diabetes no mês de novembro, e por ser o símbolo adotado um círculo azul, convencionou-se chamar de "Novembro Azul" a época em que as campanhas de prevenção e conscientização sobre diabetes acontecem.
Nos últimos anos, entretanto, embora inexista previsão legal sobre o assunto no Brasil, associações ligadas ao combate de câncer de próstata vieram lançando uma campanha também chamada de "Novembro Azul", a exemplo do "Outubro Rosa", marcado pelas campanhas de combate ao câncer de mama.
A princípio, e com a movimentação da comunidade diabética (com que hoje estou intimamente ligada através de redes sociais, blogs, amigos e parceiros profissionais), que se sentiu subtraída por esta campanha contra o câncer de próstata promovida pelas associações desta doença, julguei ilegítimo o "Novembro Azul" que não era dos diabéticos. Verdadeiro acinte à campanha de prevenção e combate à epidemia do diabetes no mundo e no Brasil!
Mas, como disse no início do texto, não costumo dar importância para associações, mas para as pessoas representadas por elas. E pensando nas pessoas, lembrei-me da minha cliente com câncer de mama, que tanto sofreu até saber que não passava por uma metástase, e do meu cliente com câncer de próstata, que hoje luta para superar uma disfunção erétil, deixada pelo câncer como uma seqüela de sua batalha pela vida. E de parentes que sofreram tanto (e alguns faleceram) em função do câncer. E de todos nós diabéticos e nossos familiares, que lutamos diariamente com nossas limitações físicas e alimentares, com as complicações do diabetes, com a sensação de ser uma bomba-relógio prestes a explodir com um problema renal, circulatório...
Assim, pensando nas pessoas, cheguei à conclusão de que ambas as campanhas, tanto a de prevenção do diabetes quanto a de combate ao câncer de próstata, são legítimas, e uma não pode aglutinar a outra, ou pretender ser a original.
Continuo pensando em formas de ampliar a eficácia dos meus atos, dando a atenção que cada doente, cada pessoa, requer para o cuidado de sua saúde. Por isso acredito que ambas as campanhas tem espaço para a sua realização, e que, unidas, poderiam ampliar as possibilidades de educação e conscientização da população brasileira sobre os riscos de cada uma delas, diminuindo as chances de óbitos em função delas, assim como o preconceito e a ignorância contra os seus portadores, as pessoas.
Juntas (Novembro Azul do diabetes e do câncer de próstata, por que não?), as campanhas de prevenção do diabetes e de combate ao câncer de próstata teriam muita força para cobrar um posicionamento do Ministério da Saúde, que nos anos anteriores apenas soltou notas singelas sobre o dia do diabetes e sobre o câncer de próstata, embora a saúde seja obrigação do Estado, com prioridade para as atividades preventivas, nestas incluídas as educacionais (artigos 196 e 198, II, da Constituição Federal).
Infelizmente, com uma campanha combatendo a outra, continuamos brigando por um espaço individualizado impossível, porque o número de doenças existentes é muito maior do que o número de cores e de meses do ano, e não cobramos de quem de Direito (o Estado) o dever de cuidado e prevenção dos problemas de saúde, e acabamos por nos reduzir a um círculo de forças quebrado!
E as pessoas? Continuam morrendo em função do diabetes, do câncer de próstata, e de outras doenças, por falta de orientação adequada e de campanhas públicas de prevenção, e pela omissão contumaz dos planos de saúde no cumprimento de suas obrigações legais e contratuais.