domingo, 26 de outubro de 2014

Transparência e dignidade não são valores com preço

Mês passado não recebi a fatura do cartão de crédito (mastercard) para pagamento. Nas ocasiões anteriores, quando não recebia a fatura, o motivo era a ausência de utilização do cartão de crédito, ou seja, não havia gastos a serem quitados, e foi exatamente isso que entendi ao não receber a fatura em setembro de 2014.

Neste mês a mastercard enviou uma fatura com valor pendente de R$ 194,00 referente a pagamento parcial, e cobrando multa e juros de R$25,00 com fundamento nesse suposto pagamento parcial da fatura. 

Além de eu não ter efetivado qualquer pagamento no mês anterior, não sabia a que tipo de gastos se referiam os R$ 194,00, ou se realmente havia utilizado esse valor no crédito, já que a fatura discorrendo as compras nunca veio.

A transparência da relação entre as partes (consumidor e fornecedor) é o princípio central do Código de Defesa do Consumidor, e tem como fundamento o equilíbrio de forças entre instituições capitalistas e as pessoas em sua individualidade e dignidade humana. 

Nos termos dos artigos 4º e 6º do Código de Defesa do Consumidor

"Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II - (...):

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; (...)"
"Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (...)"


A fatura é o meio pelo qual o consumidor é informado sobre os gastos feitos, sobre como foi utilizado o cartão de crédito. A fatura pode ser apresentada de forma física ou digital, mas esta é uma escolha que cabe ao consumidor, e não ao fornecedor. A forma de apresentação desta fatura não pode variar sem ciência prévia e concordância do consumidor, por arriscar a segurança da relação. Relações de consumos baseiam-se em práticas, e quando essas práticas apresentam variações (sem ciência prévia e concordância do consumidor) que influenciam o cumprimento das obrigações das partes, torna-se insegura e contrária ao Código de Defesa do Consumidor.

Enviar a fatura por correio, no meu caso, que não optei pelo envio da fatura digital (por email) era obrigação da mastercard, em atendimento ao meu direito à transparência e à informação clara e adequada, com especificação de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço das compras utilizadas no cartão de crédito.

Como o meu direito não foi atendido pela mastercard, enviei mensagem ao SAC do banco que me forneceu o cartão (já que "O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo" - artigo 20, CDC) questionando a cobrança da multa e dos juros, pois só não paguei os alegados gastos porque a fatura não foi enviada, e pedindo uma via da fatura, para conferir em que exatamente foram gastos os alegados e cobrados R$ 194,00. Pedi que me enviassem também um comprovante de envio da fatura, caso tivessem.

Em retorno ao meu questionamento, e provavelmente porque não tinham um comprovante (porque não enviaram a fatura), um atendente do SAC entrou em contato comigo por telefone, afirmando que extornariam o valor da multa e dos juros, e ainda enviariam a segunda via da fatura para eu conferir a efetividade dos gastos.

Todavia, o atendente argumentou que eu já estava ciente de que havia outras formas de conferir os gastos e que se eu deixasse de pagar numa próxima vez que a fatura não fosse enviada, a multa seria devida e cobrada. Ainda alegou problema dos correios na entrega.

Em resposta, expliquei ao atendente sobre defesa do consumidor, e que o recebimento da fatura é meu direito, e que se a conversa estava sendo gravada, ficaria gravado que eu não concordava com esse pretensa ciência, e que a lei do consumidor ampara o questionamento da legitimidade da cobrança, e que se o correio não entregou a fatura, eles deveriam cobrar multa do correio, não de mim.

Na prática o atendente confessou que não garante que o cartão mastercard consiga cumprir a obrigação mínima de enviar a fatura todos os meses (já que mencionou "da próxima vez...", ou seja, admite que a falha pode se repetir). Por esta razão, vou cancelar meu cartão: porque a mastercard não garante o cumprimento de suas obrigações mínimas e não respeita o direito de transparência e equilíbrio da relação da sua consumidora.

Como bem diz o jurista Fábio Konder Comparato em seu livro "A civilização capitalista", fls. 49: 


"Ora, conclui Kant, se os homens são fins em si mesmos, e não podem ser utilizados como meio para a obtenção de outros fins, daí se segue que só os homens tem dignidade; o que significa que eles não tem preço. O preço é o valor daquilo que pode ser substituído por outra coisa. Mas os seres humanos em geral, e cada pessoa em particular, são propriamente insubstituíveis na vida.

A civilização capitalista veio repudiar na história categoricamente - é bem o caso de dizer - esse supremo princípio ético. Postulando desde o seu surgimento, na idade média europeia, a busca, por cada indivíduo, do seu próprio interesse material como finalidade última da vida, o capitalismo tornou os trabalhadores assalariados e o conjunto dos consumidores dos bens produzidos pelas empresas simples objetos ou mercadorias; vale dizer, coisas que tem um preço, mas nunca uma dignidade intrínseca".  

Por isso, confiram as despesas do cartão de crédito na fatura enviada e, quando não enviada, confiram a fatura do mês seguinte, e contestem eventual multa e juros cobrados por não pagamento. Para essas empresas de cartão de crédito, como explicou Fábio Konder Comparato, pessoas com gastos mais modestos, somos simples objetos ou mercadorias, coisas que tem um preço, mas nunca uma dignidade intrínseca.

O fundamento jurídico para o meu questionamento vale para todos os serviços que envolvam relações de consumo quando a fatura não é enviada.

 

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