Abriu os olhos tendo a sensação de que eles já estavam abertos há muito tempo. Seu corpo era uma goma adocicada e rançosa que parecia grudada ao leito de um quarto (parecia ser um quarto) em um ambiente bastante nebuloso. Aquele lugar não tinha qualquer precedente de recordação viva em sua memória. Sabia seu próprio nome, ao menos achava que sabia. Mas não conseguia dizê-lo em voz alta. Achava-se uma mulher.
Então começou a sentir que sua cabeça existia, existiam cabelos, ela existia enfim. O ambiente parecia um sonho, mas ela não era um sonho (talvez um pesadelo). Medusa açucarada, com nacos de açúcar no lugar das serpentes na cabeça. Os cabelos brancos, brancos de açúcar. A água doce empurrada por alguém dentro de seu corpo.
E depois de perceber seus cabelos de açúcar e sua existência bem definida naquele quarto (sim, era um quarto, era o seu quarto, traição da memória!), percebeu que alguém a observava atentamente. Respondeu à observação quase científica daquele estranho com um olhar fixo em sua direção - olho no olho - como uma resposta física de reação à ação oposta, como uma luta por um espaço na existência daquele quarto. Eu acho que existo, e você?
Vasculhava sua cabeça de açúcar enquanto lutava com aquele estranho pelo olhar para saber quem era(m). Nada! Estava certa que, se piscasse, deixaria de existir, se é que já não tinha deixado de existir no momento anterior à abertura dos olhos. Mas seus olhos e sua cara tão açucarados quantos os cabelos viram-se numa roupa encharcada de suor, e lembrou-se de uma luta corporal consigo mesma. Vencera-se antes, perdia-se agora. E piscou!
Ficou mais um tempo com os olhos fechados, pensando inexistir, e como demorava para abrir os olhos, seu marido abraçou-a e perguntou se estava melhor. Aí sim lembrou que se chamava Débora Aligieri, era uma mulher, e aquele que a abraçava no meio da madrugada, em seu quarto, era seu marido há 10 anos.
Imagem do filme "O labirinto do Fauno", de Guillermo del Toro
Informações sobre o texto:
Este é
um episódio real que aconteceu comigo durante uma das inúmeras
hipoglicemias noturnas que tive antes de começar o tratamento com a
bomba de infusão de insulina com monitorização contínua da glicose intersiticial. Esta
foi a pior hipoglicemia que sofri em 30 anos de diabetes, mas passei
por outras experiências igualmente perturbadoras.
Utilizando as insulinas NPH e Regular atualmente disponíveis no SUS, as hipoglicemias eram mais frequentes. Com os análogos de ação rápida os episódios hipoglicêmicos reduziram de frequência, e com o análogo de ação lenta diminuíram mais. As hipoglicemias graves voltaram com maior frequência a partir de 2011, quando perdi os sintomas de hipo e hiperglicemia em função de uma complicação neurológica do diabetes (neuropatia autonômica). Monitorando a glicemia a cada 5 minutos com a bomba de infusão de insulina com monitorização da glicose intersticial - que substituiu os sintomas perdidos, ou seja, o sensor da bomba emite o alerta que o meu corpo não me dá mais - as hipoglicemias graves ocorrem menos que uma vez por ano.
Quando
tinha essas hipoglicemias noturnas, no dia seguinte não conseguia
trabalhar direito, porque enquanto a glicemia estava baixa e eu
convulsionava, o corpo não descansava. Meu marido também se cansava,
porque tinha que me socorrer no meio da madrugada, tentando fazer que eu
ingerisse água com açúcar, e depois tinha que me dar banho e trocar
minha roupa. E se eu me mexia um pouco, ele não dormia mais, ficava de
"vigília" para garantir que eu não estava convulsionando outra vez.
Escrevi este texto em 2014, a propósito da Consulta Pública da CONITEC sobre a incorporação de análogos de insulina para tratamento de pessoas com diabetes. Na ocasião, apesar
de reconhecer a eficácia dos análogos de insulina na diminuição das
hipoglicemias noturnas, a CONITEC defendeu que este não era um motivo relevante para a
inclusão dos análogos de insulina ao protocolo do SUS em diabetes.
"Em relação a hipoglicemia grave, durante a qual há necessidade de assistência de outra pessoa, foram encontrados resultados favoráveis às insulinas análogas (...). Diante da disponibilidade no SUS apenas de insulina NPH como insulina basal, considerar-se-á apenas o resultado obtido neste subgrupo. Assim, as insulinas análogas de ação rápida apresentaram 30% menos incidência de episódios de hipoglicemia grave, comparada a insulina humana regular (...)."
apesar
de reconhecer a eficácia dos análogos de insulina na diminuição das
hipoglicemias noturnas, defende que este não é um motivo relevante para a
inclusão ao protocolo do SUS em diabetes - See more at:
http://www.redehumanizasus.net/80756-o-realismo-fantastico-da-hipoglicemia-noturna-e-a-conitec#sthash.hc3i6aCs.dpuf
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de reconhecer a eficácia dos análogos de insulina na diminuição das
hipoglicemias noturnas, defende que este não é um motivo relevante para a
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apesar de reconhecer a eficácia dos análogos de insulina na diminuição
das hipoglicemias noturnas, defende que este não é um motivo relevante
para a inclusão ao protocolo do SUS em diabetes - See more at:
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