terça-feira, 19 de julho de 2016

Quando os interesses dos cidadãos e do Estado são comuns, ou A Justiça envolve a proteção de todos os direitos

É possível uma advogada da área de saúde se emocionar com um recurso da Fazenda do Estado contra (aparentemente) seu cliente? Quando o recurso não contesta o direito à saúde e ao acesso integral e equânime à assistência farmacêutica do SUS, mostrando que o Estado respeita as leis constitucionais de saúde e a democracia enquanto igualdade formal de direitos e deveres das partes no processo, sim!

Transcrevo aqui resposta que apresentei na semana passada a um recurso da Fazenda do Estado de São Paulo. O processo em questão demonstra que é possível uma Justiça que não mitiga ou estabelece hierarquia entre direitos (subjetivos e coletivos), mas protege todos.

No caso em questão, o Juiz de primeira instância concedeu liminar para fornecimento de medicamentos e insumos de diabetes (análogos de insulina e agulhas para caneta) e determinou o cumprimento da ordem judicial pela Secretaria do Estado da Saúde em 72 horas. A Fazenda do Estado recorreu solicitando ao menos 30 dias para providenciar a licitação, e o Tribunal de Justiça concedeu (em antecipação da tutela recursal) no máximo 30 dias para cumprimento. E eu concordei com o pedido, e com a decisão do Tribunal.

Segue texto da manifestação:


Desde 2008 esta patrona atua judicialmente em prol de usuários do SUS, principalmente pessoas com diabetes, demandando ao Poder Judiciário tratamentos negados pelo Executivo da saúde em contrariedade ao direito constitucional de acesso integral, universal e igualitário à saúde.

Por reiteradas vezes acompanhou com perplexidade o autoritarismo da Secretaria do Estado da Saúde que, independentemente do prazo concedido pelos Juízes, cumpria a ordem judicial no interregno de 30 dias a partir da intimação da liminar ou tutela antecipada.

Esse parece ser o tempo exigido para que a Secretaria do Estado da Saúde tome as providências administrativas necessárias ao início do fornecimento contínuo (no caso de doenças crônicas como diabetes) dos insumos e medicamentos, o que jamais justificou a ausência de um pedido simples de dilação de prazo, como fazem todos os demais jurisdicionados quando sabem que não conseguirão cumprir a ordem judicial no prazo fixado pelo magistrado.

Esta é a primeira vez que me vem às mãos (na verdade aos teclados, posto ser um processo digital) um recurso da Fazenda do Estado requerendo a dilação de prazo para cumprimento da liminar – e apenas isto, sem conturbar o direito do cidadão ao seu tratamento de saúde – dentro de um espaço de tempo viável para a administração pública.

Considerando este recurso como uma demonstração de apreço ao princípio democrático da igualdade de direitos – recíprocos a iguais deveres processuais, deslocando-se a FESP (e o Procurador do Estado que subscreve o recurso) de uma posição de superioridade para o lugar comum dos jurisdicionados – de respeito às leis e às ordens judiciais, e tendo ciência do tempo exigido pelos trâmites burocráticos para a dispensação ordenada, a única resposta possível é a concordância.

Ressalta, porém, que esta concordância não se contradiz à urgência da demanda que, em casos como este de pessoa com doença crônica, é “pra ontem”, como se diz coloquialmente. 

Mas como já aguardou anteriormente, custeando os medicamentos e insumos necessários à sua sobrevivência, o recorrido vai continuar reunindo esforços financeiros na certeza de que em breve será atendido gratuitamente pelo SUS.

Espera o paciente que a boa-fé demonstrada neste recurso pela FESP não desapareça nos argumentos do recurso, mas se concretize com o cumprimento pontual e integral da liminar até o próximo dia 21 de julho, data em que se encerra o prazo concedido por este E. Tribunal de Justiça.

Por todo o exposto, e almejando que a Justiça possa sempre se consubstanciar no atendimento de todos os interesses envolvidos nos conflitos submetidos à análise do Poder Judiciário, e que os interesses dos cidadãos e do Estado sejam comuns, manifesta o recorrido a sua concordância com o presente recurso da FESP.



Deusa egípcia Maat da verdade e da Justiça, ligada ao equilíbrio

3 comentários:

SHEILA disse...

Muito boa a resposta, sua e a do Estado. Revela a maturidade desta relação, com a atenção para que realmente seja apenas um adiamento do cumprimento à solicitação feita! Fiquei feliz com isso, pelo menos!

Débora Aligieri disse...

Sheila querida. De fato, esse é um bom sinal. De maturidade da relação como você disse ou, em outras palavras, de horizontalidade nesta relação entre cidadão e Poder Executivo, tipicamente marcada pelo desequilíbrio de forças. A decisão de pedir mais prazo da Procuradoria do Estado nos convidou à cooperação de forças (e não à disputa). Sempre me revoltou a Secretaria da Saúde fornecer os medicamentos conforme seu próprio prazo, pelo fato de poder fazer isso (já que os Juízes muitas vezes se intimidam para aplicar medidas punitivas ao Estado, seu chefe, contra o descumprimento das ordens judiciais). A minha resposta não faria muita diferença em termos de efeitos práticos (ainda que eu discordasse do pedido e da decisão, o cidadão receberia seus insumos e medicamentos em 30 dias). Mas achei importante ressaltar a possibilidade de cooperação entre as partes no processo, como forma de pensar que nem sempre os direitos precisam estar contrapostos, mas podem ser igualmente considerados e respeitados: neste caso, o direito à assistência farmacêutica individual e coletivo, já que a licitação em tempo razoável para o Estado não interfere nos investimentos previamente destinados à compra de medicamentos para outros cidadãos, ou seja, o jurisdicionado será contemplado sem que isso signifique que outras pessoas não serão. Também fiquei muito feliz com isso! E fiquei feliz com o seu comentário, obrigada!

Débora Aligieri disse...

Apesar da boa-fé do recurso da FESP, até o momento, dia 06.09.16, a Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo ainda não forneceu os medicamentos e insumos ao paciente. Portanto, está configurado o descumprimento da ordem judicial há quase dois meses. O juiz do processo determinou que o Secretário da Saúde explicasse o ocorrido, sob pena de multa, mas não houve qualquer resposta. Assim, e considerando que a ameaça de multa não foi suficiente para coagir a SES a cumprir a ordem judicial, solicitei bloqueio da conta do Estado no valor correspondente à compra das insulinas e agulhas de aplicação, para que o paciente mesmo as compre. Infelizmente, o autoritarismo continua sendo a regra.