Saiu pela Fundação Perseu Abramo o livro de Ladislau Dowbor "O Pão Nosso de Cada Dia: processos produtivos no Brasil". É muito útil ver a economia pelo lado concreto, a chamada economia real, envolvendo indústria, infraestruturas, bancos, saúde e semelhantes. Nem tudo é finanças e ajustes: tem gente que trabalha. Pequeno prefácio de Ignacy Sachs, com quem o economista tem trabalhado muito o conceito de economia mista. Somos complexos demais na economia moderna, para apenas pensar em mercado ou Estado.
Como sempre ocorre com os livros de Ladislau Dowbor, este também está disponível online, e pode ser pedido diretamente na editora para quem gosta de papel. O link para acesso ao livro em pdf é: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/Pao20web.pdf
Fonte: site do Ladislau Dowbor
AS POLÍTICAS SOCIAIS
(...) chamamos aqui de políticas sociais, basicamente saúde, educação, cultura, turismo, lazer, esporte, habitação social e segurança.
Esses setores têm em comum o fato de constituírem investimentos nas pessoas. Se não tivermos pessoas com bom nível educacional, com saúde, vivendo de maneira decente – ou seja, com qualidade de vida – nenhuma das outras áreas de atividades irá funcionar. É a dimensão do chamado capital humano, mas muito além dos aspectos de formação de mão de obra.
(…)
Uma dimensão econômica importante das políticas sociais é que sempre foram qualificadas no Brasil como gasto e não como investimento.
(...)
Como os esforços de inclusão através de investimentos sociais se dão por meio de iniciativas públicas, esse gasto será sistematicamente atacado como populismo, inchaço da máquina do Estado e semelhantes. E os impostos sobre quem pode pagar, as elites, serão um vetor de reações histéricas. A imagem de um setor privado que produz e de um Estado gastador tornou-se não mais uma ideia, mas um preconceito no sentido de gerar reações ideológicas impenetráveis ao raciocínio e diariamente marteladas na mídia.
Na realidade, quando uma empresa contrata um técnico bem formado, tende a esquecer que nesse jovem de 25 anos há 25 anos de investimento social, da família e de diversos serviços públicos, para gerar uma pessoa organizada, com bons conhecimentos, com saúde e capacidade de trabalho e de iniciativa. (...) Na economia, como dizem, não há almoço de graça, tudo é ao mesmo tempo custo e resultado, insumo e produto. E, nas políticas sociais, o investimento do setor público é fundamental.
SAÚDE
Saúde, sem dúvida, custa. Mas é o produto que mais desejamos. Ou seja, é um produto, e talvez o melhor de todos. Não é uma atividade meio, é uma atividade fim.
No entanto, devemos distinguir o nível de saúde atingido em termos de resultados e o processo que permite atingi-los. Como em qualquer processo produtivo, a setor deve alcançar os melhores resultados com o mínimo de custos.
É o que se chama de produtividade da saúde. Nas últimas décadas, o mundo ganhou uma sobrevida impressionante. Antes, vivia-se tempo suficiente para criar os filhos. Hoje, as pessoas vivem 80, 90 anos. O progresso é impressionante.
O Atlas Brasil 2013, na avaliação geral dos 5.565 municípios do país, mostra que, entre 1991 e 2010, o tempo médio de expectativa de vida do brasileiro subiu nove anos, passando de 65 para 74 anos. São resultados espetaculares.
As pessoas tendem a atribuir esses resultados aos produtos que vemos na publicidade, belos hospitais e novos medicamentos. “Tomou Doril, a dor sumiu” e semelhantes.
Na realidade, o imenso avanço da humanidade em termos de esperança de vida se deve essencialmente à vacina, ao sabão, ao acesso à água tratada e ao saneamento básico. Mais recentemente no Brasil, a redução da fome com os diversos programas governamentais também operou milagres, o que explica em grande parte os nove anos de vida que ganhamos.
Portanto, ainda que grande parte de mídia se preocupe com o tratamento da doença, os grandes ganhos de produtividade e de dias saudáveis se devem à saúde preventiva, ou seja, ao conjunto das medidas – muitas delas fora do que consideramos normalmente setor de saúde – que evitam que surjam as doenças. Prevenir é incomparavelmente mais produtivo do que remediar.
A tensão gerada aqui, entre o conceito de serviços de saúde e o conceito de indústria da doença, é evidente. O sistema privado não tem interesse no sistema de prevenção por duas razões: primeiro, porque são ações universalizadas (como vacinas, água e saneamento etc.) que envolvem muita gente sem dinheiro para pagar e grandes esforços organizacionais que resultam da capilaridade das ações universais. A vacina tem de chegar a cada criança do país. Segundo, porque, ao se reduzirem os problemas de saúde, reduz-se o número de clientes. E o setor privado vive de clientes. Está interessado em poucos que possam pagar bem. Necessidade e capacidade de pagamento são duas coisas diferentes.
A concentração dos recursos da saúde privada no sistema curativo hospitalar e nas doenças degenerativas dos idosos é um resultado direto dessa deformação.
No caso brasileiro, naturalmente, a característica básica é a desigualdade, o que faz com que se tenham gerado dois universos de serviços de saúde: o público para a massa de pobres e o privado para os ricos e a classe média. Na medida em que o setor privado da saúde, com fins muito lucrativos, tenta expandir o universo de cobertura paga, os esforços de se generalizar o acesso a bons serviços públicos e gratuitos de saúde passam a ser atacados.
(...)
Uma sociedade saudável trabalha um conjunto de frentes que incluem desde cuidados da primeira infância até o ambiente escolar, as condições de habitação e urbanismo, a qualidade de vida no trabalho, o controle de agrotóxicos e semelhantes. A vida saudável resulta de um conjunto complexo de fatores, todos densamente ligados com a qualidade de vida em geral. Não é um produto padronizado que sai de uma máquina e resolve. Envolve, na realidade, uma forma de organização social.
Quando pensamos em saúde, tendemos a pensar na farmácia e no hospital, porque nos acostumamos a pensar nela apenas quando a perdemos. E não há dúvida de que há uma indústria da doença pronta para reforçar essa visão em cada publicidade de um plano privado de saúde, de remédios milagrosos e semelhantes.
(...)
No Brasil temos a convivência caótica do SUS com os gigantes financeiros que controlam os seguros e planos de saúde, passando por organizações sociais e sistemas cooperativos diversos. É importante a visão de conjunto: temos um grande acúmulo de experiência de gestão empresarial nos setores produtivos tradicionais, como de automóveis, e também na área de administração pública tradicional. Mas, no desafio de assegurar um bom nível de saúde, que resulta da convergência de numerosos atores, inclusive dos movimentos sociais, ainda estamos à procura de paradigmas adequados de gestão. Os rumos mais significativos, o que funciona efetivamente em diversos países que atingiram excelência, apontam para sistemas dominantemente preventivos, com acesso universal e gratuito, baseados em gestão pública mas fortemente descentralizados, com forte capacidade de participação e controle por organizações da sociedade civil.
Há uma dimensão ética aqui: a de que nenhum ser humano deve padecer e sofrer quando há formas simples de resolver o problema. A indiferença é vergonhosa e injustificável. Em termos sociais e políticos, não há dúvida de que uma das melhores formas de democratizar uma sociedade é assegurar que todos tenham acesso à saúde, tanto preventiva como curativa, independentemente do nível de renda. É uma forma essencial de redistribuição indireta de renda e de se generalizar o bem-estar.
A falta de acesso a serviços básicos de qualidade, por outro lado, gera um sistema quase de chantagem: as famílias se sangram para pagar um plano privado de saúde, gastando muito mais do que o custo dos serviços prestados, simplesmente por insegurança, pela possível tragédia de um acidente ou doença grave. Acabamos contratando um plano, e pagando caro para ter um certo sentimento de tranquilidade, e não pelos serviços de saúde efetivamente prestados. Quanto mais inseguros, mais pagamos. A indústria da doença precisa ser fortemente controlada, e um dos melhores caminhos é a sistemática elevação da qualidade e acessibilidade dos serviços públicos universais de saúde.
(...) chamamos aqui de políticas sociais, basicamente saúde, educação, cultura, turismo, lazer, esporte, habitação social e segurança.
Esses setores têm em comum o fato de constituírem investimentos nas pessoas. Se não tivermos pessoas com bom nível educacional, com saúde, vivendo de maneira decente – ou seja, com qualidade de vida – nenhuma das outras áreas de atividades irá funcionar. É a dimensão do chamado capital humano, mas muito além dos aspectos de formação de mão de obra.
(…)
Uma dimensão econômica importante das políticas sociais é que sempre foram qualificadas no Brasil como gasto e não como investimento.
(...)
Como os esforços de inclusão através de investimentos sociais se dão por meio de iniciativas públicas, esse gasto será sistematicamente atacado como populismo, inchaço da máquina do Estado e semelhantes. E os impostos sobre quem pode pagar, as elites, serão um vetor de reações histéricas. A imagem de um setor privado que produz e de um Estado gastador tornou-se não mais uma ideia, mas um preconceito no sentido de gerar reações ideológicas impenetráveis ao raciocínio e diariamente marteladas na mídia.
Na realidade, quando uma empresa contrata um técnico bem formado, tende a esquecer que nesse jovem de 25 anos há 25 anos de investimento social, da família e de diversos serviços públicos, para gerar uma pessoa organizada, com bons conhecimentos, com saúde e capacidade de trabalho e de iniciativa. (...) Na economia, como dizem, não há almoço de graça, tudo é ao mesmo tempo custo e resultado, insumo e produto. E, nas políticas sociais, o investimento do setor público é fundamental.
SAÚDE
Saúde, sem dúvida, custa. Mas é o produto que mais desejamos. Ou seja, é um produto, e talvez o melhor de todos. Não é uma atividade meio, é uma atividade fim.
No entanto, devemos distinguir o nível de saúde atingido em termos de resultados e o processo que permite atingi-los. Como em qualquer processo produtivo, a setor deve alcançar os melhores resultados com o mínimo de custos.
É o que se chama de produtividade da saúde. Nas últimas décadas, o mundo ganhou uma sobrevida impressionante. Antes, vivia-se tempo suficiente para criar os filhos. Hoje, as pessoas vivem 80, 90 anos. O progresso é impressionante.
O Atlas Brasil 2013, na avaliação geral dos 5.565 municípios do país, mostra que, entre 1991 e 2010, o tempo médio de expectativa de vida do brasileiro subiu nove anos, passando de 65 para 74 anos. São resultados espetaculares.
As pessoas tendem a atribuir esses resultados aos produtos que vemos na publicidade, belos hospitais e novos medicamentos. “Tomou Doril, a dor sumiu” e semelhantes.
Na realidade, o imenso avanço da humanidade em termos de esperança de vida se deve essencialmente à vacina, ao sabão, ao acesso à água tratada e ao saneamento básico. Mais recentemente no Brasil, a redução da fome com os diversos programas governamentais também operou milagres, o que explica em grande parte os nove anos de vida que ganhamos.
Portanto, ainda que grande parte de mídia se preocupe com o tratamento da doença, os grandes ganhos de produtividade e de dias saudáveis se devem à saúde preventiva, ou seja, ao conjunto das medidas – muitas delas fora do que consideramos normalmente setor de saúde – que evitam que surjam as doenças. Prevenir é incomparavelmente mais produtivo do que remediar.
A tensão gerada aqui, entre o conceito de serviços de saúde e o conceito de indústria da doença, é evidente. O sistema privado não tem interesse no sistema de prevenção por duas razões: primeiro, porque são ações universalizadas (como vacinas, água e saneamento etc.) que envolvem muita gente sem dinheiro para pagar e grandes esforços organizacionais que resultam da capilaridade das ações universais. A vacina tem de chegar a cada criança do país. Segundo, porque, ao se reduzirem os problemas de saúde, reduz-se o número de clientes. E o setor privado vive de clientes. Está interessado em poucos que possam pagar bem. Necessidade e capacidade de pagamento são duas coisas diferentes.
A concentração dos recursos da saúde privada no sistema curativo hospitalar e nas doenças degenerativas dos idosos é um resultado direto dessa deformação.
No caso brasileiro, naturalmente, a característica básica é a desigualdade, o que faz com que se tenham gerado dois universos de serviços de saúde: o público para a massa de pobres e o privado para os ricos e a classe média. Na medida em que o setor privado da saúde, com fins muito lucrativos, tenta expandir o universo de cobertura paga, os esforços de se generalizar o acesso a bons serviços públicos e gratuitos de saúde passam a ser atacados.
(...)
Uma sociedade saudável trabalha um conjunto de frentes que incluem desde cuidados da primeira infância até o ambiente escolar, as condições de habitação e urbanismo, a qualidade de vida no trabalho, o controle de agrotóxicos e semelhantes. A vida saudável resulta de um conjunto complexo de fatores, todos densamente ligados com a qualidade de vida em geral. Não é um produto padronizado que sai de uma máquina e resolve. Envolve, na realidade, uma forma de organização social.
Quando pensamos em saúde, tendemos a pensar na farmácia e no hospital, porque nos acostumamos a pensar nela apenas quando a perdemos. E não há dúvida de que há uma indústria da doença pronta para reforçar essa visão em cada publicidade de um plano privado de saúde, de remédios milagrosos e semelhantes.
(...)
No Brasil temos a convivência caótica do SUS com os gigantes financeiros que controlam os seguros e planos de saúde, passando por organizações sociais e sistemas cooperativos diversos. É importante a visão de conjunto: temos um grande acúmulo de experiência de gestão empresarial nos setores produtivos tradicionais, como de automóveis, e também na área de administração pública tradicional. Mas, no desafio de assegurar um bom nível de saúde, que resulta da convergência de numerosos atores, inclusive dos movimentos sociais, ainda estamos à procura de paradigmas adequados de gestão. Os rumos mais significativos, o que funciona efetivamente em diversos países que atingiram excelência, apontam para sistemas dominantemente preventivos, com acesso universal e gratuito, baseados em gestão pública mas fortemente descentralizados, com forte capacidade de participação e controle por organizações da sociedade civil.
Há uma dimensão ética aqui: a de que nenhum ser humano deve padecer e sofrer quando há formas simples de resolver o problema. A indiferença é vergonhosa e injustificável. Em termos sociais e políticos, não há dúvida de que uma das melhores formas de democratizar uma sociedade é assegurar que todos tenham acesso à saúde, tanto preventiva como curativa, independentemente do nível de renda. É uma forma essencial de redistribuição indireta de renda e de se generalizar o bem-estar.
A falta de acesso a serviços básicos de qualidade, por outro lado, gera um sistema quase de chantagem: as famílias se sangram para pagar um plano privado de saúde, gastando muito mais do que o custo dos serviços prestados, simplesmente por insegurança, pela possível tragédia de um acidente ou doença grave. Acabamos contratando um plano, e pagando caro para ter um certo sentimento de tranquilidade, e não pelos serviços de saúde efetivamente prestados. Quanto mais inseguros, mais pagamos. A indústria da doença precisa ser fortemente controlada, e um dos melhores caminhos é a sistemática elevação da qualidade e acessibilidade dos serviços públicos universais de saúde.
Fonte: O pão nosso de cada dia, Ladislau Dowbor, págs. 99/106