Há 11 anos eu e Patrício, meu marido, nos conhecemos. Quando me percebi apaixonada, procurei dentro da minha cabeça alguma imagem da infância e da adolescência que indicassem que o companheiro poderia não ser branco, mas não encontrei nenhuma referência a um "príncipe encantado" negro. Essa foi a primeira vez que me percebi inserida numa sociedade racista.
Antes de apresentá-lo aos meus pais, fiquei me questionando se haveria algum problema. Não porque estávamos num relacionamento mais sério, mas porque Patrício, embora não fosse meu primeiro namorado, era o primeiro negro, e também o único cuja cor da pele foi anunciada antes da apresentação.
Antes de apresentá-lo aos meus pais, fiquei me questionando se haveria algum problema. Não porque estávamos num relacionamento mais sério, mas porque Patrício, embora não fosse meu primeiro namorado, era o primeiro negro, e também o único cuja cor da pele foi anunciada antes da apresentação.
Antes de conhecer o Patrício, jamais havia sido parada numa batida policial. Na minha primeira vez - não a primeira dele - quando voltávamos da exibição de seu filme "Negro e Argentino", uma amiga conduzia o carro sozinha na frente e nós dois estávamos no banco de trás (éramos quatro pessoas, mas um amigo havia descido no metrô). Tivemos que sair do carro sob a mira de armas e mostrar nossos documentos. Enquanto Patrício foi revistado com as duas mãos sobre o capô do carro, eu e minha amiga fomos questionadas insistentemente sobre a natureza da carona (perguntaram inúmeras vezes se não era um sequestro).
No dia do ataque do PCC em 2006, quando mais de 500 civis foram mortos (grande parte pela polícia), nós dois voltamos juntos a pé para casa, porque não havia mais ônibus circulando. Descemos a rua completamente vazia às 18 horas da tarde. Segurava com força a mão do Patrício, querendo mostrar que aquele era meu companheiro, como se com essa atitude pudesse protegê-lo, já que em São Paulo, mesmo em condições de normalidade, o assassinato de negros pela polícia tem um índice 3 vezes maior do que o de brancos.
No dia do ataque do PCC em 2006, quando mais de 500 civis foram mortos (grande parte pela polícia), nós dois voltamos juntos a pé para casa, porque não havia mais ônibus circulando. Descemos a rua completamente vazia às 18 horas da tarde. Segurava com força a mão do Patrício, querendo mostrar que aquele era meu companheiro, como se com essa atitude pudesse protegê-lo, já que em São Paulo, mesmo em condições de normalidade, o assassinato de negros pela polícia tem um índice 3 vezes maior do que o de brancos.
O racismo, que muitas vezes se difunde de maneira bastante sutil - em propagandas de produtos médicos mostrando apenas usuários brancos, em coberturas esportivas que mostram apenas mulheres loiras na plateia e que elegem um jogador branco como herói em meio a uma grande maioria negra, em "pesquisas médicas" que sugerem que negros sejam mais violentos em seu DNA - é algo muito difícil, quase impossível de se lidar.
Muitas vezes a defesa da igualdade de direitos provoca uma violência ainda maior contra aqueles que ousam dizer o óbvio: vivemos numa sociedade racista! Inúmeros são os exemplos de publicações denunciando o racismo que recebem como resposta manifestações de ódio ainda piores que as atitudes denunciadas.
Mas este é um problema que não se restringe à esfera social, invade também a esfera da intimidade do negro que, relegado à própria sorte no cuidado com a saúde mental e psicológica, quase nunca encontra suporte profissional para lidar com essas e outras questões do quotidiano que envolvem ser negro numa sociedade racista e desigual. Raras são as menções ao racismo enquanto um problema que envolve a saúde no Brasil.
Muitas vezes a defesa da igualdade de direitos provoca uma violência ainda maior contra aqueles que ousam dizer o óbvio: vivemos numa sociedade racista! Inúmeros são os exemplos de publicações denunciando o racismo que recebem como resposta manifestações de ódio ainda piores que as atitudes denunciadas.
Mas este é um problema que não se restringe à esfera social, invade também a esfera da intimidade do negro que, relegado à própria sorte no cuidado com a saúde mental e psicológica, quase nunca encontra suporte profissional para lidar com essas e outras questões do quotidiano que envolvem ser negro numa sociedade racista e desigual. Raras são as menções ao racismo enquanto um problema que envolve a saúde no Brasil.
Por isso me chamou a atenção a entrevista com a psicóloga, professora, pesquisadora, escritora e ativista Jaqueline Gomes de Jesus no site Blogueiras Negras, em 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, por trazer o racismo como um problema psicossocial.
Destaco da entrevista, que merece leitura completa por sua potência democrática e sensibilidade, o seguinte trecho:
"A saúde, de forma geral, ainda é vista como um fenômeno meramente biológico, sem relações com o mundo psicossocial. Psicólogas e psicólogos têm questionado esse posicionamento que limita a compreensão sobre como as relações sociais e os processos de subjetivação podem ser vetores de adoecimento psíquico, especialmente quando falamos de uma população historicamente discriminada em uma sociedade racista, no que se inserem as pessoas negras.
Pessoalmente, tenho me focado na discussão sobre como a subcidadania é construída socialmente, particularmente por meio de relações degradadas nesse nosso mercado de trabalho tardiamente globalizado, e perniciosamente competitivo, o qual tem raízes profundas nos séculos de escravidão que marcaram a construção das nossas imagens e discursos sobre o humano. Isso não é assunto apenas para historiadores, sociólogos ou jornalistas, como já me responderam em um parecer de artigo científico, mas também para psicólogos.
A Psicologia, como ciência e profissão, enfrenta o desafio de superar a visão eurocêntrica e colonial que ainda silencia acerca do sofrimento vivido pelas negras e negros neste país, seja no âmbito individual quanto no coletivo. Entendo que a Psicologia Social, em particular, tem apresentado contribuições relevantes nesse sentido, nos frequentes estudos sobre estereótipos, preconceito e discriminação de cunho racial, e nos mais raros sobre processos de branqueamento e branquitude, ainda que estejamos distantes de uma Psicologia – como conjunto de saberes-fazeres unificados que reconheça os movimentos sociais e intelectuais pulsantes em produção de conhecimentos, para além dos campos acadêmicos, como os feministas contemporâneos, os antirracistas, os movimentos por terra e moradia, entre outros – que realmente poderíamos chamar de “descolonial”."
Destaco da entrevista, que merece leitura completa por sua potência democrática e sensibilidade, o seguinte trecho:
"A saúde, de forma geral, ainda é vista como um fenômeno meramente biológico, sem relações com o mundo psicossocial. Psicólogas e psicólogos têm questionado esse posicionamento que limita a compreensão sobre como as relações sociais e os processos de subjetivação podem ser vetores de adoecimento psíquico, especialmente quando falamos de uma população historicamente discriminada em uma sociedade racista, no que se inserem as pessoas negras.
Pessoalmente, tenho me focado na discussão sobre como a subcidadania é construída socialmente, particularmente por meio de relações degradadas nesse nosso mercado de trabalho tardiamente globalizado, e perniciosamente competitivo, o qual tem raízes profundas nos séculos de escravidão que marcaram a construção das nossas imagens e discursos sobre o humano. Isso não é assunto apenas para historiadores, sociólogos ou jornalistas, como já me responderam em um parecer de artigo científico, mas também para psicólogos.
A Psicologia, como ciência e profissão, enfrenta o desafio de superar a visão eurocêntrica e colonial que ainda silencia acerca do sofrimento vivido pelas negras e negros neste país, seja no âmbito individual quanto no coletivo. Entendo que a Psicologia Social, em particular, tem apresentado contribuições relevantes nesse sentido, nos frequentes estudos sobre estereótipos, preconceito e discriminação de cunho racial, e nos mais raros sobre processos de branqueamento e branquitude, ainda que estejamos distantes de uma Psicologia – como conjunto de saberes-fazeres unificados que reconheça os movimentos sociais e intelectuais pulsantes em produção de conhecimentos, para além dos campos acadêmicos, como os feministas contemporâneos, os antirracistas, os movimentos por terra e moradia, entre outros – que realmente poderíamos chamar de “descolonial”."
O racismo não é um problema do negro - é da sociedade brasileira - mas é no negro que ele deixa suas marcas e sequelas. Portanto, deve ser tratado e debatido também como um problema de saúde, para que soluções sejam encontradas, não apenas no âmbito particular das pessoas negras, mas também em nível nacional.