quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Diabetes, autocuidado e desmedicalização (ou sem sertralina e sinvastatina)

Há 29 anos tenho diabetes, e há 22 anos sou atendida pelo mesmo endocrinologista. Quando comecei a me tratar com ele, aos meus 16 anos, não debatíamos muito as prescrições dadas. Com o amadurecimento a profundamento do relacionamento médico-paciente, o autocuidado começou a ser pensado com a minha participação de forma mais ativa, propondo adaptações que melhor se aplicavam à minha vida prática às recomendações médicas. Relatei um pouco deste processo no texto "O espelho em que me reflito: compartilhando saberes com meu médico".

Foi justamente nesse espírito de abertura e debate democrático das melhores opções para o meu autocuidado é que busquei junto com ele alternativas não medicamentosas para questões relacionadas ao diagnóstico clínico e complicações comuns, e também ao meu próprio jeito de ser (nervosa). Também relatei no texto "Direito à saúde e o cuidado de si" nossos planos para eu deixar de usar os medicamentos sertralina e sinvastatina, com funções antidepressiva e preventiva de eventos cardíacos para pessoas com diabetes, respectivamente.

Relato então o que aconteceu durante esse processo de "desmame", e os efeitos práticos na minha vida (biologicamente e socialmente falando).
 

Sertralina

Buscando evitar uma crise mais aguda de abstinência em relação à sertralina, programamos uma redução gradual da dosagem até a sua efetiva suspensão: num primeiro momento, tomei metade da dose habitual (25mg, metade de 50mg) por 15 dias; num segundo momento, tomei essa dose (25mg) em dias alternados (dia sim, dia não) por 30 dias; e numa terceira fase, deixei de tomar a sertralina. Fiquei com uma receita da dose habitual (50mg) para o caso de ter algum problema sério de abstinência, que felizmente até hoje não precisei utilizar.

Meu médico havia me avisado que alguns sintomas físicos poderiam aparecer com a diminuição da dosagem, e eles de fato surgiram. No fim do primeiro dia com a meia dose, sentei-me para jantar e a mesa e o solo pareciam se mover. Também senti um pouco de enjoo. Isso se repetiu no segundo dia, mas no terceiro já não sentia mais nenhum sintoma físico de abstinência. 

Nessa primeira fase, a parte emocional ficou um pouco desequilibrada, acarretando algumas oscilações glicêmicas em função da extrema variação de humor. Em alguns momentos me sentia feliz, e no instante seguinte me sentia sem ânimo para trabalhar ou fazer qualquer coisa. Os exercícios físicos amenizavam um pouco esses desânimos. Evitar situações sabidamente perturbadoras também me ajudou muito.

Algumas questões relacionadas especificamente ao autocuidado com o diabetes, uma certa rigidez com as regras de cuidado - e pouca tolerância à elevação da glicose - retornaram nesta fase, assim como questões de trabalho e de relações vieram com uma "roupagem" um pouco diferente. 

Nas questões de diabetes, precisei passar por um novo processo de aceitação da impossibilidade de manutenção da glicemia dentro dos padrões de normalidade em tempo integral, e de que nem sempre seria possível realizar as atividades programadas. Isso aconteceu depois de um dia em que, querendo fazer os exercícios com a glicemia um pouco elevada, apliquei bolus adicional de insulina para não deixar de me exercitar. O pico da insulina ocorreu junto com o final dos exercícios, que costuma reduzir a minha glicemia em 80 mg/dl, e tive uma hipoglicemia severa (o que não acontecia há mais de ano).

Nas questões de trabalho e de relações, inicialmente consegui identificar as situações pelas quais não suportava passar, e entendi que definitivamente não precisava me forçar a passar por elas. Deixei de fazer o que não me agradava. Mas mesmo assim, continuava com dificuldades de elaborar melhores soluções para trabalhar e me relacionar melhor com as pessoas ao meu redor. Creditando o fato à abstinência, resolvi aguardar mais um tempo e ver se melhorava.

Essa primeira fase, na verdade, foi a mais difícil, pois, conforme explicou meu médico depois, saí de uma dose efetiva da sertralina para uma dose inefetiva.

Na segunda fase, tive as mesmas dificuldades emocionais, com um pouco menos de intensidade, e a glicemia oscilou um pouco menos. Ainda sim, sentia que poderia encontrar formas mais harmônicas de trabalhar e viver.

Na terceira fase - desmame completo, suspensão da sertralina - a glicemia não oscilou, tive menos variações de humor, mas senti a necessidade de auxílio para compreender as minhas dificuldades diárias com o trabalho e no trato com as pessoas queridas. Embora não programado com meu médico inicialmente, julguei por bem retomar a terapia com a psicóloga, com quem me tratei por dez anos até 2009, principalmente tratando questões do diabetes. Dessa vez, retomei a terapia para abordar a minha vida em suas outras nuances.

Uma semana sem sertralina, comecei a me sentir mais viva, mais própria em minha vida. Os poemas que costumava escrever desde criança - e que durante o tempo em que tomei a sertralina habitaram pouco os meus pensamentos - retornaram com força total. Em uma semana escrevi 3 poemas (um deles coloquei ao final deste texto). 

Agora estou há cinco meses sem a sertralina, e me sinto bem.

Georges Braque, Femme à la palette

Sinvastatina

A sinvastatina foi recomendada como tratamento preventivo de eventos cardíacos, comuns em pessoas com diabetes há muitos anos, como é o meu caso. Mas depois de ler sobre a ausência de comprovação da sua efetividade, e de que existem inúmeros efeitos adversos - incluindo eventos cardíacos - combinei com meu médico a suspensão imediata do medicamento, substituído por dieta alimentar voltada à redução do LDL (colesterol ruim).

Retirei manteiga, queijos amarelos (substituídos por cottage), e carne vermelha do meu cardápio diário, deixando apenas para os fins de semana, eventualmente (como já fazia antes com alimentos com açúcar para controle da glicemia). Aumentei a quantidade de saladas e verduras cruas (passando a comprar produtos orgânicos), comecei a consumir mais frutas com aveia, e o chocolate, que não consumo diariamente, ficou restrito aos produtos com 70% de cacau ou mais (os normais permanceram para consumo eventual nos fins de semana).

A carne vermelha foi substituída por peixe - sempre assado, sem óleo, com azeite extra virgem acrescentado depois de servido no prato - e tive uma grata surpresa. Peixes de águas frias são ricos em ômega 3, que aumenta a sensibilidade à insulina (1). Depois de uma semana me alimentando de peixe, precisei diminuir a dose diária de insulina, justamente porque a sensibilidade ao hormônio aumentou.

Quando decidimos suspender a sinvastatina, meu médico me explicou que a prescreveu para que eu ficasse com o LDL mais abaixo do recomendado normalmente (100mg/dl). O valor do LDL é verificado conforme a seguinte conta: (triglicérides/5) + HDL - colesterol total = -80 (ou abaixo). Os meus últimos valores tomando a sinvastatina eram: [(triglicérides)36/5] + (HDL)71 - (colesterol total)159 = - 80.8 mg/dl (LDL no limite pretendido). Depois de 3 meses seguindo a nova dieta ficaram assim: [(triglicérides)43/5] + (HDL)66 - (colesterol total)168 = - 93.4 mg/dl (LDL um pouco mais elevado, mas ainda no limite pretendido).

Com esses resultados, acrescidos do baixo valor - 0,06 mg/dl - do exame de proteína c reativa (PCR) que é um marcador de risco coronariano (2), meu médico concordou que não seria mesmo o caso de indicar a sinvastatina para mim, e que eu poderia continuar seguindo a dieta alimentar sem tomar a sinvastatina.


Georges Braque, Les Poissons noirs

Ramipril: foi suspenso, já que não tenho mais crises de esofagite nem dores de estômago.


Cetoprofeno e diclofenaco

Para prevenir e evitar as fortes coolicas menstruais, que já me levaram várias vezes ao hospital, meu médico recomendou que 3 dias antes de menstruar eu tomasse cetoprofeno, e quando sentisse coolicas fortes durante a menstruação, tomasse diclofenaco (até dois comprimidos de uma única vez). Ambos são prejudiciais aos rins (3).

Já havia incorporado a prática de exercícios de musculação à minha rotina diária desde o diagnóstico de neuropatia em 2013. Particularmente a musculação auxilia bastante na redução das dores nas pernas. Mas acabei percebendo que com a constância dos exercícios, as dores das coolicas também diminuiram, fazendo cessar a necessidade da administração preventiva do cetoprofeno. Mas algumas vezes ainda sentia coolicas fortes nos dois primeiros dias de menstruação.

Tentei então as práticas populares para lidar com a dor da coolica, fazendo bolsa de água qunte, tomando chás e bebidas quentes, e, persistindo a dor, tomando banho de banheira com água quente, quase fervendo. Dessa forma, apenas em último caso (se a pressão cai ou se uma diarreia ocorre em função da dor) tomo o diclofenaco. Nos últimos cinco meses, somente em dois deles precisei tomar, e um comprimido se mostrou suficiente para aliviar a dor intensa, ocorrida somente quando a menstruação desce.

Mas precisei adaptar minha vida, esperando um pouco mais os resultados dessas medidas naturais de combate às coolicas, ou seja, nas primeiras horas da menorreia tenho que ter paciência para me cuidar e saber que o tempo de trabalhar, ou de qualquer outra atividade, sofrerá uma pausa para o meu autocuidado. Parece fácil, mas isso é algo difícil de se (não) realizar em tempos de produção capitalista non-stop!


Georges Braque, Femme nue assise

Tabaco

O cigarro é um vício que tenho há 20 anos aproximadamente. Meu médico e eu sempre conversamos sobre formas de abandoná-lo. Já aumentei a dosagem de sertralina para para de fumar enquanto fazia um tratamento com acupuntura a laser, e consegui me abster por alguns meses, retornando depois a fumar. Em 2014 parei de fumar sem nenhum tratamento (ou aumento da dosagem do antidepresssivo) por 3 meses, e retornei a fumar um tempo depois.

Na última consulta começamos então a pensar em redução de danos, já que parar de fumar abruptamente não funcionou antes, e também poderia causar oscilações glicêmicas importantes pela abstinência. 

Já estava fumando cigarro de tabaco enrolado em casa, pois essa é uma forma mecânica de diminuir o fumo. Até então, fumava 3 cigarros por dia (após cada refeição), feitos com uma seda grande.

Meu médico então sugeriu 3 fases de redução: num primeiro momento, reduzir o tamanho da seda e continuar com os 3 cigarros diários; num segundo momento, apenas 2 cigarros pequenos por dia (deixando de fumar após o café da manhã); e num terceiro momento, fumar apenas um cigarro pequeno por dia, ao anoitecer.

Agora estou na segunda fase (dois cigarros pequenos por dia), mas a minha grande dificuldade atual é manter esse esquema nos fins de semana, e quando amigos queridos me acompanham para fumar em ocasiões de festas. Até o fim do ano vou tentar manter apenas os dois cigarros pequenos, seja qual for a ocasião. E depois do fim do ano, tentarei atingir o objetivo planejado: apenas um cigarro pequeno por dia ao anoitecer.

E quem sabe assim um dia, naturalmente, eu pare de fumar esse cigarro diário...

Georges Braque, Les Oiseaux Noirs

Poesia (4)

Pássar-a-bstrata

Nessa vida passarinha
somente tuas asas te sustentam
o ar que respiras
e o ar em que voas
são a mesma matéria
Por isso respira
antes de te lançares ao ar
pra que não te desmaterializes
em pleno voo
E se o voo é breve, sê brava
e voa sem matéria
pois teu voo na verdade
teus sonhos é que sustentam!


Débora Aligieri


Referências:

(1) Ômega 3: a gordura aliada do cérebro e do coração - Revista Minha vida: http://www.minhavida.com.br/alimentacao/tudo-sobre/17235-omega-3-a-gordura-aliada-do-cerebro-e-do-coracao

(2) Proteína-C-Reativa e Doença Cardiovascular. As Bases da Evidência Científica - Scielo: http://www.scielo.br/pdf/abc/v80n4/a10v80n4.pdf

(3) Anti-inflamatórios não esteroides - Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Anti-inflamat%C3%B3rios_n%C3%A3o_esteroides

(4) Seção "Versos Satânicos" - blog Jornal do Apocalipse: http://jornalapocalipse.blogspot.com.br/search/label/Versos%20sat%C3%A2nicos
 

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