Em 1986, aos 9 anos de idade fui diagnosticada com diabetes, e aos 10 anos descobri que o descontrole da doença no primeiro ano havia acarretado o aparecimento de catarata nos dois olhos. Se já era difícil explicar para as pessoas que eu tinha diabetes mesmo sendo criança, explicar que eu tinha catarata por causa do diabetes era algo praticamente impossível. Aos olhos dos outros, eu era uma idosa num corpo de criança.
Com restrições de visão (cheguei a ficar com apenas 30% da capacidade visual), não conseguia ler romances porque me tomavam tempo demais. Gostava de poesias, ainda mais depois de comprar meu primeiro livro "Cânticos", de Cecília Meireles, de onde tirei um verso que até hoje faz ecoar dentro da minha alma uma pergunta, cuja resposta se modifica de tempos em tempos: Que é que dentro de ti és tu?
Chegando em São Paulo em 1997, já havia percorrido um caminho de escrita de meus próprios textos poéticos. Tinha um olho já operado da catarata (a cirurgia do segundo só ocorreu em 2003, quando me formei em Direito). Durante a faculdade, deixei em segundo plano minha veia poética para me dedicar aos estudos da lei. Mas, depois de formada, comecei a sentir que aquele algo de poesia dentro de mim também era eu, e precisava se desenvolver.
Assim, em 2005 conheci um grupo de escritores e a eles me juntei para escrever nos dois jornais então organizados por nós, editores associados: o Jornal da Praça Benedito Calixto e o Café Literário. O organizador, Eduardo Barrox, comandava a turma de uma forma bastante livre: não havia regras de publicação nem censo editorial, havia apenas prazos para envio dos textos.
Todos construíamos juntos um pouco de cada edição, que tinha desde textos narrativos de ideologia conservadora até poesia concreta, erótica, e de ideologia progressista. Todos tinham voz e espaço nos jornais. Aquela aparente contradição, que na verdade era um símbolo de democracia literária participativa, para mim, que tinha sido uma criança velha, era um local de aconchego.
Infelizmente, algum tempo depois do falecimento precoce do Barrox em 2009, vítima de câncer, os jornais se extinguiram.
Nesta época, tinha outro algo dentro de mim que também era eu: a preocupação com a saúde dos diabéticos no Brasil. Então iniciei minha militância na área da saúde através de ações judiciais, principalmente em busca de tratamentos melhores e mais modernos para diabetes. Mas sentia falta de companhia nesta luta.
Depois de participar de um Encontro Nacional de Blogueiros da Saúde promovido pelo Ministério da Saúde em 2013, comecei a fazer contatos com outros blogueiros de diabetes, que me ensinaram muito sobre redes sociais e sobre participação e cidadania ativa. Ao lado dessas pessoas, rapidamente aprendi que juntos temos voz.
Mas essa voz dentro de cada um, que somos nós, nem sempre fala uma única língua. Existe uma polifonia dentro de cada grupo, e assim deve ser para garantir que a democracia se desenvolva plenamente, com participação e respeito às idéias de todos.
Pensando nisso, ecoando ainda dentro de mim o verso de Cecília Meireles "Que é que dentro de ti és tu", e lembrando da experiência maravilhosa que tive na literatura com os editores associados, depois de conversar com a amiga Vanessa Freitas, também diabética, decidi tentar reproduzir aquele espaço na militância pelos direitos dos diabéticos. Assim surgiu o espaço no facebook Diabetes e Democracia: para abrigar naquela rede social (e fora dela também) todas as vozes (às vezes dissonantes) que o diabetes tem.
A
página está aberta à participação de todos que queiram publicar e falar
sobre o diabetes e o SUS. Por enquanto somos duas, mas esperamos que sejamos em breve muitos mais. Através do diálogo aberto com todos os
interessados no debate, esperamos encontrar soluções para melhorar o
atendimento público de diabetes no Brasil.
Para terminar, transcrevo o poema de Cecília Meireles, Cântico VIII:
Não digas: "o mundo é belo".
Quando foi que viste o mundo?
Não digas: "o amor é triste".
Que é que tu conheces do amor ?
Não digas: "a vida é rápida".
Como foi que mediste a vida ?
Não digas: "eu sofro".
Que é que dentro de ti és tu?
Que foi que te ensinaram
Que era sofrer?
Quando foi que viste o mundo?
Não digas: "o amor é triste".
Que é que tu conheces do amor ?
Não digas: "a vida é rápida".
Como foi que mediste a vida ?
Não digas: "eu sofro".
Que é que dentro de ti és tu?
Que foi que te ensinaram
Que era sofrer?
E ainda o Manifesto da Página Diabetes e Democracia:
A Constituição Federal Brasileira, em seus artigos 1º e 196, esclarece que nosso país é uma República Federativa, e que seu poder emana do povo, a quem a saúde deve ser garantida como um direito universal, enquanto dever do Estado Democrático de Direitos.
Isso significa que União, Estados e Municípios devem propiciar não só os cuidados e tratamentos necessários à garantia e manutenção da vida e saúde dos cidadãos, mas que os cidadãos tem o direito de participar ativamente do planejamento das políticas públicas de saúde a serem implantadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais.
Assim, surgiu a idéia de criar esta página para discussões, a partir de diversificados pontos de vista, acerca do tratamento do diabetes, bem como do atendimento direcionado aos diabéticos pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e também pelos planos de saúde, entre portadores da doença e pessoas que convivem ou trabalham com portadores.
Uma página para pensarmos juntos, para propormos e participarmos da implantação de medidas pelos SUS e pelos planos de saúde que se relacionem ao tratamento do diabetes e dos diabéticos.
Todos que quiserem poderão publicar nesta página, mesmo se o assunto toque o diabetes de forma reflexa. Quase tudo pode, com exceção de 3 coisas: 1) propaganda comercial; 2) propaganda eleitoral ou partidária; e 3) publicações que importem em violação a direitos de imagem, direitos autorais, e qualquer violação de direitos, e ainda em risco à saúde dos leitores.
O intuito é pensar em formas de conseguir a melhoria da qualidade de vida dos diabéticos no Brasil, e de participarmos ativamente nas políticas públicas direcionadas aos portadores desta doença, através de um debate suprapartidário, que respeite todos os posicionamentos sobre o assunto, sem qualquer atribuição maniqueísta de valor a essas opiniões.
Diversos somos mais, somos muitos, somos todos. Somos democracia. E a democracia só se consolida quando os cidadãos tem saúde para lutar por seus direitos.
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